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Tremembé reabre o debate jurídico-ético sobre limites e ponderação de direitos

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redacao@justicaemfoco.com.br 20 de novembro de 2025
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Por Carol Bassin* 

A produção de conteúdo audiovisual sobre crimes reais não só deixou de ser uma novidade como já pode ser considerada uma consolidada tendência de consumo no mundo com expressivo impacto no público. E por falar em impacto, estamos em meio à “digestão” do recente e bem-sucedido lançamento pela Amazon Prime Video da série brasileira Tremembé dirigida por Vera Egito e inspirada nos livros “Elize Matsunaga: A mulher que esquartejou o marido” e “Suzane: assassina e manipuladora”, ambos escritos pelo jornalista Ulisses Campbell.  

Trata-se de uma ficção baseada em fatos reais, cujo principal enredo retrata a dinâmica da convivência entre personalidades públicas após suas respectivas condenações de amplo alcance midiático, na Penitenciária Doutor José Augusto César Salgado, conhecida popularmente como Tremembé. Entre os personagens que servem de referência para a obra, destacam-se internos famosos como Suzane von Richthofen, Cristian e Daniel Cravinhos, Elize Matsunaga, Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni, além de “Sandrão” e Roger Abdelmassih — todos amplamente conhecidos pelo público, já julgados e condenados pela Justiça brasileira.

A atração da audiência por conteúdos true crime é sempre alvo de questionamentos “reacendidos” a cada novo lançamento. Desde os mínimos detalhes da ocorrência das transgressões, passando pela investigação, até chegar nas especificidades das pessoas envolvidas (autor e vítima), o espectador é convidado a atravessar essas produções por meio de uma jornada de sentimentos de ódio, curiosidade, revolta, empatia e até identificação seguida de catarse.

A verdade é que não há uma fórmula que defina com exatidão quais são os “ingredientes” que atraem o público. E o mesmo acontece com Tremembé, com alguns novos elementos dignos de destaque.  A escolha pela abordagem ficcional com foco nas dinâmicas interpessoais entre os condenados é o grande diferencial dessa produção, pois incita no imaginário coletivo a curiosidade do que teria acontecido com essas pessoas após suas respectivas condenações de crimes ainda tão latentes em nossa memória e que já foram objeto, inclusive, de obras audiovisuais anteriores.

Sob a ótica da regularidade jurídica dessas produções, dois importantes aspectos se destacam. Do ponto de vista do direito autoral, há que se verificar, primeiramente, se a obra pretendida será desenvolvida a partir de alguma obra autoral anterior, o que denominamos legalmente de “obra derivada”; que, como tal, precisa da autorização prévia e expressa do autor da obra originária para seu desenvolvimento.

Na Lei de Direitos Autorais, conhecida como LDA (Lei n. 9610/98) a obra derivada é conceituada como a “criação intelectual nova que resulta da transformação da obra originária” (Art. 5º, inciso VIII alínea “g” da LDA). Embora seja um conceito permeado por percepções quase subjetivas do que seria efetivamente uma derivação ou uma simples inspiração, na prática do mercado, por uma questão de segurança jurídica, essas autorizações são altamente recomendadas e usualmente providenciadas.

No caso específico de Tremembé, estaríamos falando da adaptação, em parte, dos livros e pesquisas capitaneadas pelo jornalista Ulisses Campbell, que não só autorizou, como também foi convidado a compor o corpo técnico e criativo da série. Uma decisão estratégica do ponto de vista comercial e inteligente sob a ótica do “compliance”, pois já respalda a obra audiovisual num conteúdo pretérito carregado por fontes fidedignas e baseado em uma pesquisa robusta coordenada por um jornalista, o que mitiga consideravelmente o risco jurídico dessa produção.

Por se tratar de uma criação baseada em fatos reais, temos ainda outro aspecto jurídico que, inquestionavelmente, se apresenta como o mais sensível: o da proteção legal aos direitos pessoais envolvidos.  Direitos como imagem, voz, honra, privacidade, intimidade, dentre outros que orbitam a personalidade humana como um todo, têm sua proteção prevista no Código Civil e na própria Constituição Federal Brasileira de 1988, sendo elencados como um dos Direitos e Garantias Fundamentais do indivíduo.

Segundo o Art. 5º, inciso X da CRFB/88: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”. Mas, como todo direito no nosso ordenamento, é importante que sua interpretação seja feita de forma combinada com os outros direitos coexistentes, afinal nenhum direito é absoluto.

Se, por um lado, existe o direito das pessoas não terem suas intimidades expostas; na outra ponta existe o direito da criação e da liberdade de expressão em si, igualmente protegido pela Constituição, e que fundamenta e possibilita a criação de conteúdos como Tremembé. E, no caso de potencial conflito entre esses interesses aparentemente opostos, o que ocorre na prática é o que denominamos de “ponderação entre direitos”, onde o Judiciário define, em cada caso concreto, qual dos direitos deve prevalecer, tendo como parâmetro balizador o princípio da dignidade humana, previsto no artigo primeiro da nossa Constituição, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito.  

Na seara de produção de conteúdos, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado em prol da liberdade de expressão, não coibindo a criação e circulação de obras literárias e audiovisuais. Dois julgados são emblemáticos nesse sentido: o das biografias não autorizadas, que afastou a obrigatoriedade de autorização prévia para sua publicação, mantida a proteção à honra do biografado em episódios isolados de abuso e ofensa; e o não reconhecimento do direito ao esquecimento no caso de Aida Curi, no qual o STF considerou que o direito de não permitir a divulgação de fatos verídicos e obtidos licitamente, mesmo com o passar do tempo, fere a liberdade de expressão e a memória social.

Ainda tendo esses entendimentos como importantes aliados da produção de conteúdo, o cuidado para não infringir limites nem caracterizar ofensas permanece o mesmo.  Cabe à produtora, em cada projeto, avaliar estrategicamente qual caminho escolher. Seguir com a autorização expressa das pessoas envolvidas, por exemplo, traz a vantagem estratégica de acesso a acervos pessoais e contribuição dos retratados, o que, por outro lado, pode representar limitação na narrativa. Já nas produções que seguem sem a autorização dos envolvidos, a busca por fontes regulares de consulta e a ficcionalização de alguns elementos são medidas recomendáveis para mitigar riscos.

Mas o debate acerca dessas produções, em especial Tremembé, extrapola o campo da regularidade jurídica e avança no campo da ética com uma série de reflexões; com destaque, neste artigo, para a ponderação do limite entre humanizar e conscientizar a coletividade sobre o direito constitucional à ressocialização, com o sutil limiar e risco de, em nome do “entretenimento”, contribuir para tornar essas pessoas em celebridades, com o risco de imputar ainda maior sofrimento aos familiares das vítimas.

Longe de esgotar em breves linhas um tema tão complexo, muito menos colocar na conta exclusiva de uma produção ficcional, um dilema ético que é inerente à própria sociedade, nos resta, como espectadores, torcer para que a arte sirva ao seu propósito de comunicar, gerar reflexão e transformar. E que possamos, como sociedade, olhar para essa obra como quem olha para um espelho sem julgamento e contemplar o reflexo que Tremembé propositalmente (ou não!) escancara: a de que somos uma coletividade que lida de forma dúbia com esse tema, numa mistura de atração e repulsa, curiosidade, horror e culpa.

*Carol Bassin é advogada e sócia fundadora do escritório Bassin Advocacia Cultural, especializado em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral. É também membro efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ.

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