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Justiça que não sai do papel: a frustração do "ganhou, mas não levou" e o problema da eficácia dos processos de execução no Brasil

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redacao@justicaemfoco.com.br 09 de outubro de 2025
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Por Dr. Rommel Andriotti

No Brasil, uma sensação amarga tem se tornado cada vez mais comum para cidadãos e empresas que buscam o Judiciário para resolver seus conflitos: a de "ganhar, mas não levar". Após anos de uma verdadeira batalha processual, com audiências, recursos, despesas e uma longa espera, a sentença favorável chega. O direito é reconhecido, a justiça é declarada no papel. Mas, na prática, nada acontece. O devedor não paga, o bem não é devolvido, e a decisão judicial se transforma em um quadro na parede, desprovido de efeito real. Esse é o problema da ineficácia da fase de execução.

Para entender essa dinâmica, é preciso saber que um processo cível se divide em duas grandes fases.

A primeira é o "processo de conhecimento", momento em que o juiz toma conhecimento do que cada parte tem a dizer sobre o conflito, analisa as provas e, ao final, diz o direito aplicável e decide quem tem razão. Daí vem o nome jurisdição, do latim ius dicere ou iurisdictio, que significa justamente dizer o direito[1]. É nessa fase ou processo que o direito é "conhecido" e declarado. Uma vez que o juiz "diz o direito" – ou quando o credor possui um documento que permite pular essa fase (título executivo) –, inicia-se a segunda fase: o "processo de execução". É nesta etapa, possível quando a obrigação a ser cobrada já é certa, líquida e exigível, que aquilo que foi reconhecido é efetivamente perseguido com o auxílio do Estado-Juiz por meio de medidas executórias como a penhora dos bens e direitos do devedor, bloqueio de suas contas bancárias, quebra de sigilo fiscal e outras medidas possíveis.

A fase de execução é a que concretiza todo o processo civil. No Brasil, o grande problema é que muitas vezes acontece aquela famosa situação conhecida popularmente como 'ganhou, mas não levou'. Há muitos cidadãos e empresas que vencem processos, mas no momento da cobrança da outra parte acabam não tendo o ressarcimento. São processos nos quais a parte vencedora não consegue receber seu direito porque a execução não é efetiva.

Então, é no processo de execução que o nosso sistema de justiça revela suas maiores fragilidades, transformando-se em um labirinto burocrático que, muitas vezes, beneficia o devedor profissional – aquele que utiliza as brechas da lei, a morosidade do Judiciário, a dificuldade e custo para se fazer uma investigação patrimonial e os riscos processuais que existem contra o credor para ocultar seu patrimônio e se esquivar de suas obrigações.

Vamos explorar algumas causas desse problema multifacetado.

POSSIBILIDADES DE MELHORIA NA CONDUÇÃO DOS PROCESSOS

O sistema judicial atual, em grande parte, ainda opera com uma mentalidade analógica em um mundo digital. Procedimentos que poderiam ser simples e automatizados, como intimações e citações, ou levantamento de valores, ainda dependem de uma série de etapas manuais e demoradas, dando ao fraudador tempo para tomar providências para frustrar as medidas executórias que estão sendo intentadas. Essas tarefas simples podem levar meses a depender da Vara em que o processo tramita, um "tempo morto" que corrói a confiança do cidadão na Justiça.

Mas, se o diagnóstico é claro, quais seriam os caminhos para a solução? A resposta passa, invariavelmente, pela modernização e pela tecnologia. Não é mais aceitável que, em pleno século XXI, as comunicações processuais ainda dependam de métodos ultrapassados. A utilização de ferramentas como WhatsApp e outras redes sociais para citações e intimações, com algumas adaptações para acontecer de forma regulamentada e segura, traria uma agilidade imensa aos processos.

Por exemplo, seria efetivo, mediante regulamentação adequada, estabelecer convênios dos tribunais com as principais plataformas digitais, como a Meta, proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp, ou com o LinkedIn, TikTok ou X, para publicização de algumas decisões e realização de intimações e citações que chegassem diretamente no WhatsApp ou outras mídias sociais da pessoa interessada. Tal iniciativa, implementada de forma gradual e com salvaguardas apropriadas, poderia revolucionar a comunicação processual, garantindo maior efetividade na localização das partes enquanto preserva os direitos fundamentais e a segurança jurídica dos procedimentos.

Outra ideia seria a criação de um portal governamental unificado, de cadastro obrigatório para todos os cidadãos e empresas, que poderia também centralizar as comunicações oficiais e acabaria com a dificuldade de localizar as partes. Ter um meio digital centralizado (hub) para acessar e abrir uma citação ou intimação poderia ser muito mais efetivo do que é realizado atualmente.

Até o presente momento, por enquanto, é preciso ainda que a comunicação se dê por carta, ou por um edital que é publicado no mural físico do fórum e em um site da Justiça que ninguém acessa, ou ainda, em alguns casos, é necessário que um oficial de justiça fique tentando insistentemente localizar uma pessoa que está se ocultando para não receber aquela intimação. O comportamento de algumas pessoas que se ocultam para não serem citadas ou intimadas nos processos toma muito tempo de todos os envolvidos e poderia ser solucionado com um uso mais efetivo da tecnologia e das ferramentas hoje disponíveis.

REFORMAS LEGISLATIVAS PODEM CONTRIBUIR PARA A SOLUÇÃO DO PROBLEMA

Uma reforma legislativa no Código de Processo Civil também contribuiria para a solução do problema. Por exemplo, a regra da impenhorabilidade de rendas até 50 salários mínimos[2] e de investimentos até 40 salários mínimos[3], criada para proteger o patrimônio mínimo do cidadão, é facilmente distorcida para proteger devedores com alto poder aquisitivo e, se aplicada de forma cega e indistinta, acaba blindando totalmente a renda da maior parte da população, pois são poucos os que ganham mais do que 50 salários mínimos no Brasil. Com efeito, segundo dados do IBGE, a renda mensal média atual do brasileiro é de R$3.488,00[4].

Logo, esses dispositivos poderiam ser alterados para permitir pelo menos a penhora de um percentual das rendas do devedor de modo a preservar sua dignidade e mínimo existencial mas, ao mesmo tempo, viabilizar o pagamento de suas dívidas. É fato que a maioria das pessoas só tem a sua própria renda para pagar suas despesas e, se essa renda fica integralmente blindada, na prática essas pessoas ficariam imunes de terem que pagar suas dívidas, o que seria um contrassenso com consequências desastrosas para o mercado de crédito do país.

A morosidade, ineficácia e imprevisibilidade da Justiça geram insegurança, desestimulam investimentos, prejudicam o ambiente de negócios e, no limite, minam a própria essência do Estado de Direito. É necessária uma Justiça que não apenas declare o direito, mas que o concretize de forma rápida e efetiva. E, aliás, que faça isso com prioridade em favor dos cidadãos que dela necessitam, em vez de sempre priorizar o próprio Estado que, atualmente, é o principal "cliente" da Justiça.

O Estado, por sinal, ao cobrar dívidas fiscais e tributárias, possui uma série de privilégios que o credor comum não tem, sendo isso atribuído ao "interesse público" superior do Estado receber seus créditos. Mas não é também do máximo interesse da coletividade, composta por todos nós, que o cidadão receba o que é seu? E que o receba o mais rapidamente possível? É como disse Rui Barbosa: "justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta"[5]. Por isso, é necessária também uma reforma do sistema de privilégios dos créditos e da forma como é realizado o concurso de credores[6].

A título de reflexão, é possível se inspirar e aproveitar, respeitando as peculiaridades do sistema brasileiro, elementos que funcionam em outros países e demonstram maior efetividade na fase executória. Nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema de execução de sentenças confere uma autonomia e agilidade notáveis ao credor. Lá, o advogado do credor, considerado um "oficial do tribunal" (officer of the court), pode emitir diretamente intimações (subpoenas) para obter um vasto leque de informações financeiras e patrimoniais do devedor sob juramento, e pode até mesmo requerer que o devedor preencha um detalhado formulário sobre todo o seu patrimônio (Fact Information Sheet), sob pena de poder até ser preso por desacato (contempt of court) em caso de recusa[7]. Evidentemente, qualquer adaptação de tais mecanismos ao contexto nacional deveria respeitar os princípios constitucionais e as tradições de nosso sistema de direito codificado, buscando inspiração sem importação acrítica de institutos estrangeiros.

No Brasil , em contraste, a obtenção de informações e a emissão de ordens similares dependem invariavelmente da análise e autorização do juiz em cada pequena etapa, criando um abismo de agilidade e transferindo para o Estado uma investigação que no modelo americano é conduzida de forma muito mais eficaz pelo próprio credor e seus advogados.

 

A ADVOCACIA COMO PARTE ESSENCIAL DA SOLUÇÃO DO PROBLEMA

É bem verdade que nos últimos anos houve avanços importantes, mas o Judiciário brasileiro continua enfrentando sérios gargalos que impactam diretamente a celeridade e a efetividade da Justiça.

Neste ponto há de se destacar outro vetor essencial de solução do problema: a advocacia.

A solução para a inefetividade crônica da Justiça não virá apenas de uma caneta legisladora ou de um novo software implantado nos tribunais. Ela exige uma mudança de mentalidade, uma evolução do papel do advogado: de um mero peticionário que aguarda passivamente os lentos ritos processuais para um agente proativo de transformação, um verdadeiro gestor da execução. O advogado moderno não pode mais se contentar em apenas "pedir" ao juiz; ele precisa investigar, descobrir e indicar os caminhos para que a decisão judicial se materialize.

Isso significa empregar técnicas e métodos como a tecnologia da informação, a investigação patrimonial aprofundada (asset tracing), o cruzamento de dados públicos e privados e a formulação de pedidos executórios cirúrgicos. Ao adotar essa postura, inspirada em modelos onde o credor e seu representante têm a autonomia para conduzir a busca pelos bens, o advogado deixa de ser coadjuvante da burocracia estatal para se tornar protagonista da efetivação do direito de seu cliente.

A tecnologia, nesse contexto, é a grande aliada. Ao trabalharem com sistemas de automação de documentos, plataformas de gestão de processos e inteligência artificial para análise de dados, os profissionais se libertam do trabalho repetitivo e burocrático. A digitalização da prática jurídica não apenas melhora a eficiência, mas, fundamentalmente, libera o capital intelectual do advogado para que ele se dedique a tarefas mais delicadas e complexas, como a elaboração de teses, a estratégia investigativa e o atendimento diligente a clientes em situações intrincadas.

Essa transformação é, em sua essência, um resgate da função primordial da advocacia: não apenas lutar por uma sentença, mas garantir que a justiça declarada no papel se converta em justiça real na vida do cidadão. É um chamado à responsabilidade profissional para que cada advogado, em sua esfera de atuação, contribua para evoluir o sistema judiciário, tornando-o, na prática, mais eficiente, ágil e, naturalmente, mais justo.

CONCLUSÃO

Em última análise, a jornada de um processo judicial não pode terminar com uma sentença emoldurada na parede. A sensação de "ganhar, mas não levar" corrói a confiança do cidadão nas instituições e desestimula o ambiente de negócios, deixando um rastro de insegurança jurídica e frustração.

Ainda que a própria jurisprudência já ensaie respostas a esse cenário, buscando alternativas para garantir a efetividade das decisões, a solução definitiva para este impasse exige uma ação em duas frentes interdependentes: uma reforma estrutural que modernize e reequilibre as regras do jogo, conferindo ao credor ferramentas mais eficazes sem desproteger a dignidade do devedor; e uma revolução na prática da advocacia, que deve assumir seu papel de protagonista na investigação e na satisfação do crédito.

Superar a inefetividade da Justiça é o grande desafio de nossa geração de profissionais do Direito. É uma tarefa que nos convoca a sermos mais do que operadores da lei, mas verdadeiros arquitetos de um sistema onde a palavra "justiça" seja, enfim, sinônimo de "resultado".

Dr. Rommel Andriotti é advogado e sócio fundador do escritório Rommel Andriotti Advogados Associados. Atua como professor de Direito Civil e Processo Civil na Universidade Presbiteriana Mackenzie e também na Escola Paulista de Direito (EPD). É mestre em Direito (concentração em processo civil) pela PUC/SP (2020). É também mestre em Direito (concentração em Direito Civil) pela FADISP (2020). Possui pós-graduação lato sensu em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito e é bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU, 2015).

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