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A polarização política no Brasil: tolerância e libertação para transpor o antagonismo vigente

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redacao@justicaemfoco.com.br 10 de setembro de 2025
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A polarização política é um fenômeno que, embora não seja novo, tem se intensificado no Brasil, de forma extremista, principalmente na última década, sobretudo com o advento das redes sociais. O problema, porém, não está apenas na existência de opiniões divergentes — o que é natural em sociedades democráticas – , mas na forma como essas divergências são estruturadas e manipuladas.

O resultado é uma dinâmica que frequentemente reduz a qualidade do debate político, atinge diretamente a vida cívica, compromete a capacidade de formulação de políticas públicas eficazes e põe em xeque as instituições que estruturam o estado democrático de direito.

No momento como posto, as disputas ideológicas se acendem de forma tão extrema que se cria um campo de batalha de “nós contra eles”, o que dificulta a construção de consensos, a avaliação crítica de propostas e a participação de diferentes atores que participam do cenário político.

A reflexão que ora se propõe é a de uma leitura equilibrada sobre os impactos desse fenômeno, de modo a destacar como isso pode comprometer o desenvolvimento do país e a renovação de lideranças políticas, ao mesmo tempo em que se pretende, com a devida modéstia, apontar caminhos que permitam aos brasileiros olhar para além do antagonismo vigente.

O fenômeno da polarização é a tendência de reduzir problemas públicos — que por natureza são complexos, multifacetados e interdependentes — a dicotomias artificiais: certo ou errado, esquerda ou direita, progresso ou retrocesso.

Essa simplificação excessiva ignora variáveis cruciais, obscurece nuances e impede que diferentes perspectivas técnicas sejam consideradas. De conseguinte, políticas que exigem debates sérios e de alto nível, fiquem relegadas apenas e tão somente às discussões com viés nitidamente ideológicos, e não pela sua efetiva capacidade de gerar benefícios coletivos.

A exemplo, ficam escanteados temas sensíveis e urgentes como o aborto, o respeito à diversidade, o uso de drogas para tratamentos medicinais, a austeridade fiscal, as reformas tributária e política, entre outros.

Chegou-se, inclusive, por meio desses embates ideológicos, superficiais e banais, pasmem, a questionar a lisura do nosso sistema eleitoral.

O resultado é a valorização da performance retórica, e não do conteúdo técnico. Nesse ambiente, especialistas são frequentemente desconsiderados ou até hostilizados, enquanto políticos e comunicadores carismáticos ganham espaço por sua habilidade de mobilizar sentimentos de adesão ou rejeição, e não por sua contribuição ao enfretamento dos problemas.

Causa perplexidade o momento então vivenciado, pois parece que, infelizmente, a sociedade brasileira muitas vezes não consegue enxergar um palmo à frente.

Tal fenômeno pode ser analisado à luz da filosofia clássica, em especial da parábola da caverna descrita por Platão em sua obra “A República”. Neste enredo, os prisioneiros da caverna viviam acorrentados e, desde sempre, foram induzidos a confundir sombras projetadas na parede com a realidade, ao invés de buscar a luz do sol — que consubstanciava a verdade acessível pela razão e pela crítica.

Tal como na caverna platônica, em vez de buscar a luz da reflexão crítica, a sociedade permanece fascinada e se deixar hipnotizar pelas sombras do espetáculo. O brilho efêmero de frases de efeito substitui o esforço coletivo de compreender dados, contextos e cenários. O que se perde é justamente a possibilidade de se lograr decisões governamentais eficazes, baseadas em conhecimento sólido e em análises realistas.

A metáfora desenhada por Platão descreve, com surpreendente atualidade e sobriedade, a condição de uma sociedade aprisionada por doutrinas que pregam a polarização e que a incapacita de olhar além das sombras ideológicas, confundindoa, ainda, com narrativas simplificadas e caricaturais em contraponto a realidade complexa dos problemas públicos.

O astrônomo Carl Sagan talhou de forma brilhante em seu “Contact” pensamento que muito bem se amolda ao presente, disse ele: “Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa necessidade profunda de acreditar” (1986).

Com sincero pesar, arrisco dizer que boa parte da população brasileira vem, lamentavelmente, seguindo crenças desarrazoadas e desprovidas de fundamentos mínimos, na medida que dia a dia se satisfaz com representações distorcidas e abastecidas por slogans ideológicos, manchetes midiáticas e manipulações das mídias sociais, sem confrontar tais artifícios com a complexidade concreta do mundo político e social.

Via de consequência, um dos efeitos deletérios da polarização é o nascimento de uma crença maniqueísta lastreada na falsa convicção de que apenas um grupo detém a "verdade absoluta", enquanto o outro encarna o erro ou a ameaça – claramente se estabelece a luta do bem contra o mau.

Essa postura, ao mesmo tempo dogmática e sectária, mina a confiança mútua que sustenta a democracia. Quando críticas passam a ser interpretadas como ataques pessoais ou existenciais, abre-se espaço para a desinformação, para as teorias conspiratórias e para a corrosão da confiança nas instituições.

Aliás, a história está aqui para nos lembrar, sobretudo se visitarmos os escritos de Norberto Bobbio (1997) a respeito do autoritarismo:

O fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso na Itália em 1922, na Alemanha em 1933 e no Brasil em 1964. Ele acusa, insulta, agride, como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política. No poder, essa direita não hesita em torturar, estuprar e roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos. Mais do que a corrupção, o fascista pratica a maldade.

As ponderações de Bobbio, muito embora façam menção à “direita”, devem servir de reflexão para ambos os lados que protagonizam essa polarização, uma vez que o modo de operar tanto de “A” quanto de “B” revela-se praticamente idêntico.

Para seguir adiante, convém aludir à advertência de Platão (2006), segundo a qual o prisioneiro recém liberto ao sair da caverna e contemplar a luz, sofreria inicialmente com o choque da realidade, mas só assim poderia alcançar o conhecimento verdadeiro.

De modo análogo, romper as correntes dessa polarização requer esforço, disposição ao contraditório e ao debate saudável limitado ao campo das ideias, abertura para enxergar a realidade em sua complexidade e, essencialmente, cultivar a tolerância que propõe uma convivência com respeito mútuo. Sem isso, o país permanecerá aprisionado a uma condição de ignorância coletiva, amparada por discursos rasos, banais, revestidos de ideologias e de enfrentamento, os quais são incapazes de agregar grupos ou de oferecer soluções factíveis.

Para enfrentar a crise da polarização, é útil considerar a tolerância como proposta pelo jusfilósofo italiano Noberto Bobbio (1992) que, no alto de sua sapiência, descreveu com notória propriedade a prática da tolerância como princípio basilar para se atingir a convivência social pacífica:

Se somos iguais, entra no jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam, todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacífica (toda convivência se baseia ou sobre o compromisso ou sobre a imposição): a tolerância, nesse caso, é o efeito de uma troca, de um modus operandi, de um do ut des, sob a égide do "se tu me toleras, eu te tolero". É bastante evidente que, se me atribuo o direito de perseguir os outros, atribuo a eles o direito de me perseguirem. Hoje é você, amanhã sou eu. Em todos esses casos, a tolerância, é evidentemente, conscientemente, utilitariscamente, o resultado de um cálculo e, como tal, nada tem a ver com o problema de verdade.

Norberto Bobbio, ao defender uma ética da convivência política, enfatiza a importância de aceitar a legitimidade da discordância e de buscar soluções que respeitem direitos básicos, instituições e regras do jogo democrático. Adotar essa perspectiva implica promover o espaço público como arena de contestação civil, campo para que ideias possam ser discutidas com respeito, sem anular a diversidade de opiniões, e que o desacordo não vire retaliação ou exclusão.

Desse modo, abrem-se caminhos para que novas lideranças sejam formadas, projetos sejam avaliados pela qualidade de suas propostas e o país avance – mesmo com embates de ideias – de forma civilizada, democrática e com tolerância, afastando, assim, a estagnação que o fisiologismo antagonista impõe.

Além disso, se a parábola da caverna nos ensina algo, é que a libertação só ocorre quando se rompe com a ilusão das sombras. O desafio da sociedade brasileira, portanto, é ter a coragem de sair da caverna da polarização, abrir os olhos para a realidade em sua complexidade e, a partir daí, construir um caminho de maturidade democrática que privilegie soluções coletivas em vez de rivalidades estéreis.

O aprisionamento à polarização reflete, mais uma vez, a condição da caverna. Muitos preferem permanecer no conforto da sombra ideológica que lhes é familiar, mesmo que ilusória, a enfrentar a dificuldade de sair ao encontro da luz — que exige o esforço, reflexão e abertura ao debate. Enquanto isso, o país permanece preso a ciclos de estagnação e o impossibilita de romper as correntes que limitam os avanços sociais.

A lição platônica permanece atual: "é dever dos que viram a luz descer novamente à caverna, para ajudar os outros a enxergar" (2006). Ou seja, esses seres mais experimentados têm o desafio e o dever de oferecer à sociedade brasileira os meios, os mecanismos e/ou os instrumentos para que ela possa se libertar das amarras da polarização, abandonar as sombras do espetáculo politiqueiro e caminhar em direção a uma democracia madura, provocando, via de consequência, a verdadeira transformação de divergências em oportunidades de crescimento coletivo.

A imparcialidade, nesse sentido, não se confunde com neutralidade ingênua, mas com a disposição filosófica de buscar a verdade para além das sombras ideológicas. Significa reconhecer que problemas públicos exigem mais do que trincheiras partidárias: pedem análise racional, compromisso com o bem comum e disposição para o diálogo.

Do autor

Jamil Cherem Garcia é bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Oficial de Gabinete da 1ª Vice-presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. Especialista em Administração Pública e Gerência de Cidades pela Faculdade de Tecnologia Internacional – FATEC. Especialista em Gestão e Legislação Tributária pela Faculdade de Tecnologia Internacional – FATEC. Especialista em Ciência Política pela Universidade Candido Mendes – UCAM. Autor de tantos outros artigos para revistas científicas e periódicos do cotidiano.

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