Por Robson Ramos
É chegada a hora do “Inquérito de Mim”.
A palavra “inquérito” vem do latim, investigar ou procurar. Na sua etimologia, portanto, a palavra remete à busca, questionamento ou até mesmo investigação. Tem a ver com informações que possam esclarecer um crime, sobre como aconteceu e quem deve ser responsabilizado.
No “Inquérito de Mim”, e de quem quiser fazer um inquérito de si, a consciência é quem deve dar as cartas. Segundo Aristóteles a consciência remete ao raciocínio e ao conhecimento (1). Aristóteles faz uma distinção entre consciência sensível (mais voltada para a fantasia) e a consciência intelectual, mais ligada à razão segundo a qual a vida deve ser pautada (2).
Consciência remete à percepção imediata de cada um no que diz respeito ao que se passa dentro ou fora de si. "Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos", dizia o filósofo (3).
Segundo o pensamento de Aristóteles a virtude implica numa disposição voltada para a excelência moral, alcançada por meio de hábitos ou ações, e não necessariamente de forma inata ou como fruto de conhecimento. O agir consciente é o que importa.
Em Aristóteles, a virtude (aretê) é uma disposição adquirida para a excelência moral, que se manifesta através de ações e hábitos, e não algo inato ou apenas resultado de conhecimento (4).
Instaure-se “Inquérito de mim” por me perder, como que vendendo a consciência, usando a máscara de quem finge não estar sabendo de nada e fazendo de conta que o óbvio ululante não está na frente dos meus olhos. Dessa forma sigo pensando que estou do lado certo. Mantenho minhas convicções para mim mesmo, como forma de sobreviver nesse mundo, dividido por dogmatismos, como se estivesse à deriva no mar agarrado a um colete salva-vidas.
O que importa é não ser pego defendendo uma situação que implique numa rotulação que me traga consequências indesejáveis e me deixe marcado para o resto da vida, como sendo deste ou daquele lado. Afinal, hoje em dia é fácil alguém achar alguma coisa contra mim, se quiserem. Harvey A. Silverglate, autor de Three Felonies a Day (Três crimes por dia), que o diga (5).
Por isso a política líquida (6) deve prevalecer e seguir seu caminho fluido, ainda que imprevisível. O importante é manter a aparência de que “estou alinhado” e, viver dissimulando, aproveitando enquanto estou bem colocado na vida.
Mas até quando? Não estaria eu asfixiando minha consciência, da qual devo ser escravo? Afinal, não foi Aristóteles quem disse "seja senhor da tua vontade e escravo da tua consciência"?
Cogito se não seria o caso de simular um fato novo e fazer uma “delação premiada”. Afinal, minha consciência é um juiz implacável. Ela não dá moleza. Me questiono se ela pode ser asfixiada em virtude da minha arrogância e desonestidade intelectual?
Enquanto esse turbilhão de sentimentos se mexe dentro de mim o melhor é seguir fingindo que estou acreditando estar do lado certo. Afinal, gozo do conforto de uma posição dentro do sistema que se mantém no poder. Vou fazendo o que me pedem, tirando uma foto aqui outra ali com gente bacana e em situações que remetem à dolce vita. Estou conseguindo manter meu lugar ao sol e é isso que importa. Fazendo assim conseguirei chegar ao outro lado. Mas, logo me vem a pergunta: o que haverá do outro lado? Para alguns será o pelotão de fuzilamento, “tiro na nuca”, diz o outro. E a consciência?
O negócio é seguir fazendo meu feijão-com-arroz, sem me expor e ficar atrás de algum superior, bem protegido. Mas aí vem minha consciência e sugere que estou traindo o certo e justo (7), que, por sinal, está bem à frente dos meus olhos. E o libelo do “inquérito de mim” vem e me joga com força num canto do ringue. Me vejo cambaleante tentando me levantar e abafar a consciência.
Admitir que estou no lado errado da história é impensável. Seguir vivendo na bolha cada vez mais indefensável é quase que uma condenação definitiva, contanto que consiga ficar ao lado daqueles que, como eu, seguem acreditando e defendendo as mesmas narrativas. Enquanto houver uma “estrutura de plausibilidade” (8) que sirva de bunker para minha ambiguidade covarde e que mantenha minha narrativa respirando, ainda que por aparelhos, sigo vivendo.
O “Inquérito de Mim”, que pode ser o meu, o seu e de tantos outros, pode acabar sendo o Inquérito do fim da linha. E a única forma legitimamente consciente de sair dele é pela via aristotélica, ou seja, agindo, a exemplo de Spinoza (9) que, por uma questão de coerência com sua própria consciência fez sua escolha, e a fez publicamente. Recusou os benefícios que o sistema lhe oferecera. Submeteu-se ao “Inquérito de Mim” de si próprio. Não se sabe se viveu em paz, mas foi intelectualmente honesto com o que era óbvio diante dos seus olhos.
Reconhecido como um dos grandes racionalistas da filosofia do Século XVII (10), viveu uma vida simples trabalhando como polidor de lentes ópticas, após ter recusado oportunidades de prestígio como, por exemplo, a de docente em Amsterdam, Holanda. Faleceu aos 44 anos em 1677 em decorrência de uma doença pulmonar, provavelmente causada pela inalação do pó de vidro fino enquanto fazia o polimento das lentes.
O “Inquérito de Mim”, sob as lentes de Spinoza, não nos deixará em paz.
Sobre o autor:
Robson Ramos é advogado, mestre em Direito pela UNIVALI/Itajaí/SC. Consultor em Compliance, organizador e coautor das obras: A Nova Face da Missão: desafios plurais de um mundo em convulsão. Descoberta Editora, Londrina, 2024 e Compliance para micro, pequenas e médias empresas (D´Plácido Editora, BH, 2023). Autor também das obras O Sequestro do Rolo Sagrado (2011) e O Idoso do Plaza (2018), assim como de outros livros e artigos sobre vários assuntos.
Referências bibliográficas:
1- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Edipro, 4ª Edição, São Paulo. 2018
2- ARISTÓTELES. Da Alma (De Anima). Aristóteles, Edipro, São Paulo, 2011
3- SOARES, Josemar. Consciência de Si: Direito e Sociedade. Editora Intelecto, São Paulo, 2018
4- ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Edipro, 4ª Edição, São Paulo. 2018
5- SILVERGLATE, Harvey A. Three Felonies A Day – How the
Feds Target the Innocent (Três Crimes por Dia – como os federais perseguem o inocente). Encounter Books, New York, 2011
6- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2001.
7- SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 9ª Edição, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012
8- BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas A construção social da realidade. Editora Vozes, Petrópolis, 1996
9- SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada em Ordem Geométrica. Editora 34, 1ª Edição. São Paulo, 2024
10- GARRETT, Don (org). Editora Ideias e Letras, 1ª Edição. São Paulo, 2011