Por Ronaldo Nóbrega
Editor Sênior Justiça em Foco
Chegamos com mais uma nota aqui no espaço Poder em Foco, que busca levar ao conhecimento de todos as informações nas entrelinhas. Porque no Brasil, o essencial raramente está na superfície. Quase sempre está nas altas horas do Palácio do Planalto, onde decisões são tomadas longe dos refletores, com mais fumaça do que luz, mais arranjos do que razões, mais interesses do que ideias. Afinal, toda Medida Provisória tem uma letra E escondida no rodapé: de emenda. E, como quem conhece os meandros da política nacional aprendeu a duras penas, cada emenda tem um pai, uma madrinha e um padrinho de batismo.
Claro, ninguém leu. Ou, se leu, fingiu que entendeu. Refiro-me à Medida Provisória nº 1.300/2025, mais uma criatura parida pelo ventre barroco da tecnocracia brasiliense. Uma tentativa, corajosa ou temerária, depende do ponto de vista, de repaginar as engrenagens do setor elétrico nacional. Publicada no apagar das luzes de maio, a medida chega como um clarão em porão mofado, desses onde se guardam os esqueletos da República. De um lado, os que produzem energia. De outro, os que a distribuem. E ao centro, como sempre, o indefeso contribuinte, que paga sem saber por quê.
O texto da MP pretende redesenhar a engenharia institucional da eletricidade, desde as regras para quem pode se intitular produtor de sua própria energia, título hoje mais cobiçado que poltrona cativa em camarote de Carnaval, até a redefinição de como se cobra pelo uso da rede elétrica. Agora falam em discriminar, na fatura, quanto é pela energia e quanto é pelo transporte. Eureka. Descobriram que sardinha e caminhão não são a mesma coisa.
Mas o verdadeiro espetáculo, como sempre, acontece no Congresso. A casa do verbo inflamado e da prática titubeante já nos brindou com mais de 200 emendas. Duzentas. Como nos tempos das grandes capitanias hereditárias, cada emenda é uma sesmaria de interesses particulares. Nada que busque racionalizar o setor escapa ao triturador dos lobbies, que tudo digerem e regurgitam em nome do interesse público.
E há ainda os subsídios. TUSD, TUST, siglas cabalísticas que ninguém decifra, mas que todo brasileiro paga com resignação quase litúrgica. A MP quer acabar, aos poucos, com os descontos acumulados por grandes consumidores e aventureiros, em sua grande maioria disfarçados de renováveis. É o suficiente para que surjam os arautos do apocalipse elétrico, falando em contratos rasgados e no fim do Brasil solar, como se o atual sistema fosse um modelo suíço de sobriedade regulatória.
A realidade, senhores, é que o setor elétrico não responde à urgência do calendário político. Opera em décadas, não em mandatos. Decisões tomadas agora moldarão o país de 2035. E sim, a MP traz virtudes. Busca modernizar uma arquitetura envelhecida, impregnada de penduricalhos, incentivos cruzados e jabutis embalsamados. Mas, como em toda cirurgia de alta voltagem, o risco de choque é real. Mexer nisso sem preparo é como tentar domar um transformador com garfo de sobremesa.
É inevitável fazer a pergunta que toda criança já fez diante da tomada. Para que serve isso tudo? A quem interessa esse manicômio regulatório em que o trabalhador leva culpa por tomar banho quente? O Brasil precisa de um setor elétrico que não seja prisão de castas empresariais, mas motor de desenvolvimento, competitivo e claro como luz de poste.
Entretanto, enquanto se acumulam bilhões em projetos, megawatts em PowerPoints e promessas em comissões, o país profundo segue no escuro. Literalmente. Porque a conta vai chegar. Sempre chega. E será paga pelo mesmo de sempre, o cidadão, com juros, multas e humilhação, e sem direito à luz no fim do túnel.
Acompanhemos esse drama técnico-político com a sobriedade que a história exige. Mas não alimentemos ilusões. O Brasil é perito em parir reformas que nascem velhas. Resta saber se, desta vez, a eletricidade será enfim colocada a serviço da civilização ou se continuará alimentando o espetáculo das sombras.
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